Filme exibido na 49ª Mostra de São Paulo.
Daniel Rezende é um dos nomes mais conhecidos e respeitados do cenário audiovisual brasileiro e, ao longo de sua carreira, emprestou sua genialidade para diversas produções, dos mais variados gêneros. Vencedor do BAFTA e indicado ao Oscar por seu impecável trabalho em ‘Cidade de Deus’ como montador, Rezende não apenas ajudou a eternizar projetos como ‘O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias’ e ‘Tropa de Elite’, como se aventurou na cadeira de direção a partir de 2017 com o incrível ‘Bingo – O Rei das Manhãs’. Ganhando ainda mais notoriedade com os live-actions baseados em ‘Turma da Mônica’, o realizador demonstrou uma versatilidade invejável e uma paixão inegável pela sétima arte.
Em 2025, Rezende retornou para o cenário audiovisual com o aguardado ‘O Filho de Mil Homens’. O poderoso drama, inspirado no romance homônimo de Válter Hugo Mãe, posava como um desafio para o diretor: afinal, como afirmado por boa parte dos estudiosos e historiadores do cinema e da literatura, o livro sempre foi considerado uma obra inadaptável para as telonas. Mas, contrariando as expectativas e mergulhando de cabeça em um cândido e tocante universo arquitetado por um dos maiores autores da contemporaneidade, Rezende entregou a obra mais madura de sua carreira até agora e, sem sombra de dúvida, uma das grandes produções nacionais da década.
A narrativa se desenrola em vários núcleos que convergem para um ponto em comum, por mais que se apresentem em cronologias diferentes: logo de cara, somos apresentados ao solitário Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador introspectivo que passa seus dias indo e vindo do mar, acompanhado de um pequeno boneco de pano que ele mesmo tricotou e que encara como sua família. Entristecido por nunca ter se casado e tido filhos e beirando os quarenta anos, as coisas mudam quando, por obra do destino, um pequeno garoto chamado Camilo (Miguel Martines) torna-se órfão e cruza caminho de Crisóstomo, dando origem a uma família inesperada.
Camilo, que passou por um nascimento conturbado e perdeu a mãe, a desiludida Francisca (Juliana Caldas), eventualmente começa a perguntar a Crisóstomo se ele não tem vontade de ter uma esposa, para que ele mesmo tenha uma outra mãe – a mãe que nunca pôde conhecer por obra do destino. E, seguindo os meandros de um fortuito encontro, o melancólico pescador cruza caminho com Isaura (Rebeca Jamir), uma mulher carregada pelo trauma e por uma infância e uma adolescência turbulentas, que se casou com Antonino (Johnny Massaro), um rapaz impedido de ser quem realmente é para se encaixar em uma estrutura social falida. Pouco após o casamento, Isaura percebe que não há escapatória de uma vida de complacência e aceitação, vagando pela praia até encontrar a cabana de Crisóstomo.

O longa não conta apenas com uma ótima e profunda história, mas acerta em cada detalhe cênico que se propõe a entregar para o público. Como mencionado alguns parágrafos acima, Rezende supera a si próprio ao entregar o trabalho mais amadurecido de sua carreira como diretor, pegando algumas páginas emprestadas de suas produções anteriores e escolhendo os aspectos certos para pavimentar essa tocante e reflexiva jornada. E, enquanto traduz os escritos de Hugo Mãe de forma a honrar o material em que se inspira, busca uma originalidade técnica que irrompe em uma sinestesia cinemática de tirar o fôlego.
O diretor não pensa duas vezes antes de trazer incontáveis referências ao projeto, apoiando-se em estéticas bastante conhecidas, mas pincelando-as com uma maneira única de enxergar o mundo. As incursões mágicas temperam um realismo brutal da existência humana – a do medo da solidão e da insignificância -, beirando o onirismo presente no Surrealismo cinematográfico; reiterando esse escopo, temos investidas lúdicas com pontos de fuga e planos simétricos que remontam à identidade de Wes Anderson, porém, afastando-se dos tons pastéis e da verborragia para abrir espaço a um silêncio que singra entre a melancolia, o desespero e a tranquilidade.
 
Toda a ambientação serve como reflexo de uma profunda crítica social sobre o individualismo predatório e o fato de as pessoas terem se esquecido de amar em prol de uma intrincada engrenagem que se esquece do ser em si. Dessa maneira, cada membro do elenco faz um trabalho impiedoso para garantir que seus personagens sejam tratados com o máximo de complexidade e compaixão – com destaque às aplaudíveis performances de Santoro, Caldas e Martines. É impressionante a forma como o trio, e, obviamente, o restante dos atores e atrizes, se rende a incursões individuais e completas que se transfiguram em arquétipos universais e associáveis.
Ao adaptar o romance de Hugo Mãe, Rezende promove uma desassociação do tempo-espaço como o conhecemos, criando não apenas um microcosmos palpável e onírico, mas uma atemporalidade que fornece um caráter dêitico às discussões e às personas que coloca em tela. Aproximando-se da genialidade do romance ‘O Filho de Mil Homens’, a adaptação acerta em cada um dos elementos que esquadrinha e reitera a habilidade e a destreza de cada membro envolvido no projeto.
 
 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
								 
					 
					